quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dó, ré, mi, Fafá

Típico início de tarde de verão. Quase outono. Um charmoso café de Belo Horizonte. Daria igual se Barcelona, Rio, Paris, Milão, Nova York. Esse, um recanto de simpáticas mesinhas, gente bonita, boa música, bebida e comida idem. Charme gera charme, atrai. Ou é atraído. Sei lá. Só sei que, por um momento, a praça parou. Ou melhor, se movimentou. Para um lado e depois para outro. Em uníssono. Como que por música. Música de uma só nota: Fá.
Regente desse ato, a morena, olhos arredondados e levemente escuros, movimentos quase calculados de tão precisos, camiseta branca, discreto decote e calça jeans cruzou toda a extensão da praça. Parou, olhou de ponta a ponta, girou. Voltou. A praça toda junto com ela. O sorriso de lado a lado do rosto perfeito à luz do Sol, que lhe chegava entrecortada por folhas e galhos, indicou que tinha encontrado o alvo. Sentou-se, pediu um café e a praça, orgulhosa da nova presença, tentou voltar à normalidade, com seu tilintar de copos, talheres e um sambinha legal ao fundo.
Uma amiga nos apresentou. Rapidamente. Fafá seu nome. E eu, fã de prima. Pudera. Além da graça gratuita, da conquista de um largo inteiro sem a menor consciência, Fafá ainda é simpática. Acima da média. E acreditem: Fafá fala. Gente boa. Boa praça mesmo, aquela.
Fafá não é do tipo mulherão que para transito. Mas de outro não menos encantador. Ou mais. Olhar misterioso que se sobrepõe ao corpo – escultural é verdade – que beira o 1,60m. Uma linda moça, carinha de franga ainda. Mas que para trânsito, isso para!
Dançarina de alta performance. Dessas que viajam aos quatro cantos com arte. Fez da arte ofício. Por puro prazer. Ganha a vida assim. E o mundo. Já encantou vários países, deslizando pelos palcos com uma companhia de dança digna de uma Fafá: fantástica.
Atleta de alta performance – e que performance! Pois para suportar as seguidas horas de ensaio diário há que ser. Fafá é. Não dá um passo em falso. Não atravessa. Não atropela o ritmo. Não amarrota o figurino. Não perde o charme, a ternura. Fafá é assim. Simples assim. E isso não é pouco, senhoras e senhores.
De volta àquele início de tarde típico de verão quase outono de outrora, depois que Fafá bailou para lá e para cá, sentou-se. O largo aquietou-se. A música voltou a ser ouvida. Ordens servidas. Conversas retomadas. No sinal, automóveis aguardavam a vez. Ficou verde, se foram. A vida recobrou sua rotina – de sábado, é fato. Pedestres continuaram a cruzar a praça que já não era mais a mesma. Ficou fã. E, quando Fafá se foi, pra sempre órfã.

domingo, 14 de junho de 2009

Nada além de minério-de-ferro - versão final)

Vovó Tônia deu um sorriso maroto, em seu leito de morte, antes que Padre Preto lhe conferisse a extrema-unção. “Que o senhor a acompanhe”, ordenou o religioso ao final de sua reza. Não houve quem, naquela sala, contivesse a emoção. Vovó Tônia, uma espécie de amuleto do povoado, estava definitivamente, aos 103 anos, deixando esta vida. Ia juntar-se aos seus dois maridos queridos, um morto mais ou menos 35 anos depois do outro – é bom que se anote. E a seu bisavô, o francês Nicolino Terzien, certamente o responsável por aquele risinho, que ninguém compreendeu, quando a velhinha mais popular da Serra dos Contos partiu.
Neta preferida de vovó, Virginie, a caçulinha de outras quatro, já contava quase 40 e sabia muitas histórias do sítio comandado pela mão forte de D. Tônia. Preferiu registrar para o resto de sua vida aquele sopro de felicidade com que Vovó resumiu sua centenária passagem pela terra. “Que linda a senhora está. Vai com Deus. Eu te amo muito”. Foi tudo o que conseguiu balbuciar. Vovó manteve o sorriso. Ainda hoje, Virginie se emociona ao lembrar daquela tarde de Sol. “Ela era mesmo uma figura”, resume.
A Serra dos Contos é um pequeno povoado ao Sul de Belo Horizonte, em Minas Gerais, entre as diversas serras que por lá há. Muita gente arrisca a afirmar que ela nem existe, tamanha a dificuldade de encontrá-la. “Eu garanto. Foi onde passei boa parte de minha vida. E não costumo levar muita gente lá porque tenho medo de gastar”, brinca Virginie quando alguém a pressiona por uma orientação mais precisa de como se chega até a serra.
Foi nessa espécie de Shangri-lá das Alterosas que a pequena Tônia nasceu, cresceu e virou história. Seu bisavô Nicolino chegou à Serra há muito tempo. Nela se instalou, criou raízes e só saiu de lá para a morte. Veio da Europa para trabalhar na mineração nos anos 1860. Por lá nada havia. Quer dizer, nada além de minério de ferro. E foi esse tal minério que fez com que Nicolino desse com os costados na serra, que à sua época nem se chamava dos Contos.
Nicolino foi destacado para examinar a pequena montanha que se punha defronte a um vale de beleza sem fim. Antes mesmo de checar a qualidade do minério ficou encantado com o local. Decidiu que ia fincar raízes por ali. E qual não foi sua alegria quando descobriu que o minério não prestava para nadica de nada. “É uma porcaria. Nem em 200 anos se pode aproveitar”, exagerou.
Mas não estava tão errado. O minério da Serra dos Contos tinha algo em torno de 20% de ferro. E – Nicolino bem sabia – não havia tecnologia disponível para transformar aquele monte de terra em ouro, como se fazia lá para as bandas de Congonhas. Muito mais do que cem anos se passaram depois da, digamos, praga do bisa de D. Tônia.
Nicolino sabia do que falava. Tanto que, ao chegar na Serra dos Contos, tratou de trabalhar para fazer daquele pedaço de terra seu reinado. E de sua família, já formada à época. Depois de comprar terras e fazer a casa onde D. Tônia viveu por 103 anos, começou a construir a igreja, que viu pronta poucos meses antes de morrer. Por isso, Vovó Tônia, que nunca foi flor que se cheirasse, tinha tanto zelo pelo templo local.
Tradicional mineira que foi, nunca engoliu, por exemplo, a chegada de um padre mulato à vila, cerca de 60 anos depois da morte de seu bisa. “Nunca confiei em preto e não é agora, só porque diz que é padre, que vou confiar”, dizia para todo mundo ouvir, incluindo o próprio. Padre Guido – esse era seu nome – nem dava ouvidos. “Um dia a senhora vai gostar de mim como eu te gosto”, falava o moreno padre, de voz mansa e sorriso permanente.
Vovó não apenas demonstrava fazer força para aturá-lo como nunca perdoaria o fato de ele ter tido a “brilhante idéia” de pintar a igreja de marrom. Foi branca a vida inteira, até a chegada dele. “Isso é para disfarçar. Igreja branca destaca demais quem é pretinho”, dizia. “Ah é? E por que o fogão de todo mundo aqui é de barro branco e o seu é vermelho? Deve ser pra me agradar”, respondia de primeira. E no fundo, se adoravam. Padre Preto, mesmo tendo de ignorar as ironias de vovó, sempre passava pela fazenda dela para filar a bóia.
Nessa hora, vovó Tônia não tinha a menor dúvida quanto a seu ofício. “Você come feito um padre de verdade. Benza Deus”, dizia. Para essa ele não tinha resposta. “Fazer o que se a senhora faz tudo ficar mais gostoso?”, retrucava.
E era verdade. Naquele fogão de barro vermelho vovó barbarizava nos doces e nos salgados. Virginie, que passou sua infância praticamente toda em volta do fogão, lembra mais dos doces, que D. Tônia fazia em seus tachos de cobre, caprichosamente polidos. “Tinha doce de leite, de abóbora, de côco, mamão, do caule do mamão, laranja da terra”, enumerava, com a certeza de que esquecera outro tanto.
Uma cena de que Virginie nunca vai se esquecer, até porque era recorrente em sua infância, é da hora em que vovó enfileirava os meninos por sobre uma enorme bancada e punha, com os dedos, uma prova do doce da vez na boca de cada criança. “Era uma festa. Quando ela começava a botar a gente em cima da bancada, parecia que o mundo parava. Era bom demais”, relembra.
A vida na serra era mesmo uma alegria. Virginie também guarda com carinho um dos cerca de 30 aniversários de vovó que ela presenciou. A criançada reunida resolveu dar um presente diferente para ela. Subiram o morro equipados e estenderam na serra uma enorme faixa com a seguinte frase. “Parabéns, vovó. Toda a serra te ama”.
Nem precisa dizer o quanto ela se emocionou ao se ver na serra, o que a tornou ainda mais popular no lugar. Até porque a faixa perdurou por umas boas semanas lá no alto. A emoção de vovó tinha a ver com o que lhe dissera seu bisavô quando ela ainda era uma adolescente. “Pode considerar-se uma sortuda se não acabarem com a serra antes de você morrer”.
Era chegada a hora. Embora por décadas se ouvisse falar que uma grande mineradora ia colocar a serra abaixo, essa acabou por se tornar mais uma das mágicas histórias do lugar. Mas agora era sério. A mineradora chegou e dias antes da partida de Vovó Tônia, representantes da empresa foram ao povoado mostrar as vantagens de se acabar com tudo por lá.
Se tornaria um ponto turístico, muito mais pessoas conheceriam a cidade, teria mais dinheiro, progresso, a educação das crianças estaria garantida e outras maravilhas. Padre Preto gostou do que ouviu. Afinal as boas-novas incluíam uma reforma geral na igreja. O povo também ficou muito bem impressionado. Mas pediu a benção de D.Tônia. “Tudo acaba, né? Nossa serrinha também vai acabar”, admitiu. “Mas não enquanto eu estiver viva”. Vovó Tônia partiu com seu sorriso maroto dois dias antes de a mineração começar a corroer a Serra dos Contos. Abençoada por Padre Preto.

domingo, 17 de maio de 2009

No banheiro...

O banheiro do lugar também era muito arrumado. Tudo em seu devido lugar. E de muito bom gosto. Quadros, papeis, espelhos. A organização do local afastou, por alguns instantes, os pensamentos de Tavinho, que, definitivamente, não estava preparado para uma “porrada no estômago, logo no primeiro round. Ensaiou um xixi. Ficou ali por alguns minutos. Vontade nenhuma. Disfarçou. Percebeu que estava já algum tempo ocupando o mictório do concorrido banheiro e se envergonhou com a hipótese de alguém achar que ele era viado e estava aí passando o tempo, junto aos rapazes.
Pela cabeça, um turbilhão de coisas. E nada para dizer a Carol quando retornasse à mesa.
Lavou cuidadosamente o rosto diante de enorme espelho e chegou até a ensaiar umas falas.
– Você? Se você que é linda, educada, imagina eu.
– Você não pode estar falando sério. Todos os homens correm atrás, eu tenho certeza.
Reprovou todas. Isso o deixou ainda mais irritado. Tentou outra.
– Vai ver que é porque você é chata pra caralho, só olha para o próprio umbigo e não consegue perceber nada à sua volta.
Dessa ele até gostou, mas não teria coragem de falar. Não queria por tudo a perder. O jogo estava apenas começando e não seria um problema na saída de bola que comprometeria toda a partida. Pensou mesmo odiando futebol.
– Olha, o problema é que você é exigente demais – disse quando retornou à mesa – mas é natural. Você é muito exigente com suas coisas, com seu trabalho, seu desempenho em tudo. Se é assim consigo própria deve ser com seus casos também – concluiu.
– Ah, isso sou mesmo. Porque eu me cobro muito, tenho de cobrar de quem está comigo também. Não estou certa?
O pensamento de Otávio estava longe, em coisas sem importância, tal qual aquela conversa.
– Ahnn... claro. Está, está certíssima. Vamos pedir a comida?

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Como assim (by Gama)

“Por que eu não dou a menor sorte com homens?”. A pergunta pegou Otávio completamente de surpresa. Afinal aquela não era uma noite qualquer. Desde há dias ele planejara deixar os filhos com a avó – sim, era ele quem tinha a guarda das crianças – e tratou cuidadosamente de todos os detalhes: o elegante restaurante, o pro seco italiano, que – ele sabia – ela por ironia do destino aprendeu a amar nos tempos em que morou em Madri, na Espanha, onde fez MBA em moda. A comida, a música de fundo. Naquela noite, se tudo desse certo, assumiria a dianteira da extensa lista – ele imaginava – de pretendentes de Carol. Se sua performance diante da moça fosse plena, poderia sair dali como novo namorado, sei lá. Mil coisas passou por sua cabeça naqueles dias que antecederam o encontro. Eles não se viam havia meses.
Otávio era daqueles homens que planejam tudo e não deixam nenhum detalhe de fora. Fazem planos para ir a padaria da esquina, lavam o carro todo fim-de-semana na calçada de casa, faça Sol faça chuva. Mas não costumam lidar bem com o improviso. Por isso precisou de um tempo para processar a pergunta.
– Como é que é? Não entendi?
Ela repetiu.
– Estou perguntando se você, que é meu amigo – frisou –, sabe me dizer por que raios eu não dou sorte com relacionamentos. Só arrumo bomba. E parece que tenho um pára-raios de roubada. Tu soube da última, não soube? Te contei, não?
Otávio chegou a olhar para trás e para os lados. E rezou para que ela estivesse falando com outro. Não estava. O amigo da vez – ela não tinha tantos –, escolhido para ouvir suas lamentações acerca do universo masculino era mesmo Otavinho. Teve vontade de se levantar, mandar tomar no cu e ir embora. Afinal, não tinha planejado tudo tão minuciosamente para ouvi-la falar de outros. Levantou-se. Ameaçou sentar-se novamente. Pensou o que dizer. Olhou bem para ela e falou:
– Vou ao banheiro.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Como assim?

“Por que eu não dou a menor sorte com homens?”. A pergunta pegou Otávio completamente de surpresa. Afinal aquela não era uma noite qualquer. Desde há dias ele tratou cuidadosamente de todos os detalhes. Otávio era daqueles homens que não deixam nenhum detalhe de fora. Mas que não costumam lidar bem com o improviso. Por isso precisou de um tempo para processar a pergunta.
– Como é que é? Não entendi?
Ela repetiu.
– Estou perguntando se você, que é meu amigo sabe me dizer por que raios eu não dou sorte com relacionamentos. Só arrumo bomba. E parece que tenho um pára-raios de roubada. Tu soube da última, não soube? Te contei, não?
Otávio concluiu que amigo da vez para ouvir suas lamentações acerca do universo masculino era ele próprio. Teve vontade de se levantar, mandar tomar no cu e ir embora. Não tinha planejado tudo tão minuciosamente para ouvi-la falar de outros. Levantou-se. Ameaçou sentar-se novamente. Pensou o que dizer.
Olhou bem para ela e falou:
– Vou ao banheiro.